Todos os dias era a mesma coisa.
Lurdes levanta e prepara-se para mais um dia de trabalho. Não tem expectativas,
sabe que tudo o que a espera é a rotina. Acorda, olha ao redor e depara-se com
a simplicidade de sua casa. Desanima-se.
O velho sofá herdado da mãe que
falecera há seis meses. Desbotado, sem graça, ainda guardava o cheiro de dona
Marilda. O vaso de folhagens murchas, o copo vazio do café que tomara antes de
deitar, calçados pela sala. Tudo isso só demonstrava seu estado atual: viver um
dia após o outro.
Chega à mesa para tomar café e
depara-se com o bilhete do filho. “Mãe, a mensalidade do cursinho está
atrasada. Precisamos resolver isso, logo.” Suspira e pensa em Vítor, menino
estudioso e empenhado a conquistar os sonhos. É por ele. Só por ele que Lurdes
continua naquele trabalho horrível. Vítor é o presente que a vida lhe deu.
Lurdes sabe que tem que sair para
trabalhar. Tem que chegar cedo à padaria onde faz salgadinhos. O cheiro da
fritura já está impregnado nos cabelos e roupas. Ela sai da padaria, mas a leva
junto. Tem impressão que todos sentem o cheiro de óleo, farinha e ovos quando
ela passa.
Do ponto de ônibus, Lurdes
visualiza a casa lotérica. Por que não tem coragem de apostar? O que custa
tentar a sorte uma só vez? Seu desânimo denuncia que tem medo até mesmo de
arriscar. O que a deixou assim? A doença
da mãe, a morte precoce do marido quando completavam dois anos de casamento? A
falta de oportunidade de estudar? Talvez não tenha sido escolhida para brilhar,
como algumas pessoas que conhece.
Os carros passam. Mulheres
bonitas os dirigem. Usam lenços no pescoço, pulseiras e muito rímel. Olha pra
ela. Abrigo, camiseta “Padaria Doces Sonhos” e as unhas por fazer. “E se
acertasse os números? Será que mudaria? Perderia o cheiro de óleo?” Pelo menos
Vítor compraria o tênis que tanto deseja. Um só não. Muitos.
O ônibus para pra ela. Não
precisa nem acenar. Já faz oito anos que pega o ônibus no mesmo lugar e tanto
os motoristas, quanto os passageiros já a conhecem. Porém, desta vez ela deixa
o ônibus passar. Decide arriscar os números. Chega à lotérica, compra o
bilhete, faz sua aposta e pega o próximo ônibus.
No trajeto faz planos. Trocar o
sofá. Alisar os cabelos. Tirar carteira de motorista. Comprar uma casa com
piscina. Ter funcionárias e nunca, nunca mais comer frituras. Imagina a hora de
contar a novidade para o filho. Com abraços e pulos de alegria comprariam
passagens para a Espanha. Vítor torce pelo Barcelona.
Termina o expediente e Lurdes
corre para conferir os números. Não foi desta vez. Nem perto. Tudo bem, ela
sabia que arriscar é tempo perdido. Falando em perder, a ousadia a fez perder
as passagens de um dia de frituras, ou seja, de trabalho. Tudo igual, ônibus de
volta pra casa, sofá velho, café morno e contas para pagar.
Tudo igual nada. Na bolsa, nossa
protagonista ouve o celular. É Vítor. O filho, aluno exemplar, ganha um bolsa
de estudos em Barcelona. Esperanças reacendem. O destino cuidara para que Vítor
brilhasse e, se ele brilhar, já está tudo resolvido pra ela. Volta a fazer
planos.
Arrumar a mala de Vítor, comprar
o tênis parcelado em cinco vezes. Ele precisa estar bem vestido para estudar em
um lugar importante. Providenciar um
celular com promoção para os dois. Aguardar emails e telefonemas todos os dias.
Arrumar a casa para esperá-lo. Ligar para as tias e contar a novidade.
No outro dia começa tudo de novo.
Bate o ponto. Farinha, ovos, fermento...
Luisa Neves
Esse e o conto? Ficou ótimo!! Parabens bjjj
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