sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Para refletir: Um retrato que pode ser o seu

Todos os dias era a mesma coisa. Lurdes levanta e prepara-se para mais um dia de trabalho. Não tem expectativas, sabe que tudo o que a espera é a rotina. Acorda, olha ao redor e depara-se com a simplicidade de sua casa. Desanima-se.
O velho sofá herdado da mãe que falecera há seis meses. Desbotado, sem graça, ainda guardava o cheiro de dona Marilda. O vaso de folhagens murchas, o copo vazio do café que tomara antes de deitar, calçados pela sala. Tudo isso só demonstrava seu estado atual: viver um dia após o outro.
Chega à mesa para tomar café e depara-se com o bilhete do filho. “Mãe, a mensalidade do cursinho está atrasada. Precisamos resolver isso, logo.” Suspira e pensa em Vítor, menino estudioso e empenhado a conquistar os sonhos. É por ele. Só por ele que Lurdes continua naquele trabalho horrível. Vítor é o presente que a vida lhe deu.
Lurdes sabe que tem que sair para trabalhar. Tem que chegar cedo à padaria onde faz salgadinhos. O cheiro da fritura já está impregnado nos cabelos e roupas. Ela sai da padaria, mas a leva junto. Tem impressão que todos sentem o cheiro de óleo, farinha e ovos quando ela passa.
Do ponto de ônibus, Lurdes visualiza a casa lotérica. Por que não tem coragem de apostar? O que custa tentar a sorte uma só vez? Seu desânimo denuncia que tem medo até mesmo de arriscar.  O que a deixou assim? A doença da mãe, a morte precoce do marido quando completavam dois anos de casamento? A falta de oportunidade de estudar? Talvez não tenha sido escolhida para brilhar, como algumas pessoas que conhece.
Os carros passam. Mulheres bonitas os dirigem. Usam lenços no pescoço, pulseiras e muito rímel. Olha pra ela. Abrigo, camiseta “Padaria Doces Sonhos” e as unhas por fazer. “E se acertasse os números? Será que mudaria? Perderia o cheiro de óleo?” Pelo menos Vítor compraria o tênis que tanto deseja. Um só não. Muitos.
O ônibus para pra ela. Não precisa nem acenar. Já faz oito anos que pega o ônibus no mesmo lugar e tanto os motoristas, quanto os passageiros já a conhecem. Porém, desta vez ela deixa o ônibus passar. Decide arriscar os números. Chega à lotérica, compra o bilhete, faz sua aposta e pega o próximo ônibus.
No trajeto faz planos. Trocar o sofá. Alisar os cabelos. Tirar carteira de motorista. Comprar uma casa com piscina. Ter funcionárias e nunca, nunca mais comer frituras. Imagina a hora de contar a novidade para o filho. Com abraços e pulos de alegria comprariam passagens para a Espanha. Vítor torce pelo Barcelona.

Termina o expediente e Lurdes corre para conferir os números. Não foi desta vez. Nem perto. Tudo bem, ela sabia que arriscar é tempo perdido. Falando em perder, a ousadia a fez perder as passagens de um dia de frituras, ou seja, de trabalho. Tudo igual, ônibus de volta pra casa, sofá velho, café morno e contas para pagar.
Tudo igual nada. Na bolsa, nossa protagonista ouve o celular. É Vítor. O filho, aluno exemplar, ganha um bolsa de estudos em Barcelona. Esperanças reacendem. O destino cuidara para que Vítor brilhasse e, se ele brilhar, já está tudo resolvido pra ela. Volta a fazer planos.
Arrumar a mala de Vítor, comprar o tênis parcelado em cinco vezes. Ele precisa estar bem vestido para estudar em um lugar importante.  Providenciar um celular com promoção para os dois. Aguardar emails e telefonemas todos os dias. Arrumar a casa para esperá-lo. Ligar para as tias e contar a novidade.

No outro dia começa tudo de novo. Bate o ponto. Farinha, ovos, fermento... 

Luisa Neves

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